Marie e a insónia: "Estamos perto da psicose às 4 da manhã"

“Não durmo. Não durmo. Não durmo Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma! Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!”
Canalizando a incapacidade de dormir para a figura de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa plasmou em Insónia o lamento por esta condição de que padecia. Não estava sozinho. Kafka, Proust, Duras, Styron, Scott Fitzgerald, Woolf, Pavese, Hemingway, Plath, Palahniuk e até mesmo Shakespeare ou Ovídio, todos eles escritores, todos eles “campeões da fadiga” como escreve Marie Darrieussecq, que tem aqui lugar da fala: também é um deles.
Uma das mais bem sucedidas escritoras da sua geração, a francesa-basca conseguiu atingir esse estatuto não obstante sofrer de insónia crónica e debilitante desde o nascimento do seu primeiro filho. “À medida que os meus filhos aprendiam a dormir, eu desaprendia”, escreve em Não Dormir.
Publicada agora em Portugal (Zigurate), esta é uma obra híbrida onde descreve a sua experiência como insone, desde a dependência do álcool de que padeceu para suportar a condição até descobrir a causa clínica da mesma, passando por um relato bem humorado de todos os gadgets e métodos que tentou sem sucesso para conseguir pregar olho. No entanto, é também um livro prenhe de reflexões ensaísticas sobre uma condição que existe desde sempre, mas que parece estar a agravar-se perante uma sociedade cada vez mais ansiosa e obcecada pela produtividade, que encara o sono como uma “anomalia sistémica no humano”.
Em entrevista ao Observador, a autora estava acordada perto da hora de almoço, mas não durante muito tempo, já que depois de cada noite insuficientemente dormida segue-se uma quebra imprevisível. “O meu problema é que nunca sei quando vou apagar, por isso nunca pude — e ainda não posso — ter uma vida social adequada”, assume, para depois acrescentar: “Acho que vou voltar a cair depois desta chamada do Zoom, é mais ou menos a minha hora”.
Muitos dos seus pares, do passado e do presente, tentaram aplacar o sentimento de injustiça metafísica ao considerar a insónia como um sinal de uma condição superior. “Creio que resulta naquilo a que chamarei a grande inteligência”, escreveu Marguerite Duras; “aqueles que não viveram intimamente esta tragédia nada podem compreender. A insónia é a maior experiência que se pode ter na vida”, aventou, por seu lado, Emil Cioran. Darrieussecq não desvaloriza essas experiências, mas também não as empola. “Somos das poucas pessoas que conseguem fazer da insónia o nosso ganha-pão”, garante.

▲ A capa de "Não dormir", de Marie Darrieussecq, na edição portuguesa da Zigurate
Zigurate
Não Dormir é em parte um livro de memórias sobre a insónia, em parte uma exploração ensaística das suas origens, dos seus efeitos e do seu legado na nossa cultura. Começando pelo primeiro, como é que a sua própria experiência com esta condição a levou a escrever este livro? Na verdade, não me lembro exatamente porque é que comecei este livro. Estava obcecada e suponho que todos os escritores lidam com as suas próprias obsessões. Como refiro no início, tinha uma crónica mensal sobre insónias numa revista e descobri que não estava sozinha, que este era um problema social e clínico de grandes dimensões, na verdade. Não são estatísticas exatas, mas acredito que metade da população tenha insónias ou algo parecido — pelo menos metade dos meus escritores… perdão, dos meus leitores. O deslize é importante porque também me apercebi que os meus escritores favoritos são todos insones, absolutamente todos eles: Proust, Kafka, Duras, Pessoa, que escreveu versos maravilhosos sobre a insónia. Posso dizer-lhe que o primeiro título pensado para o livro era uma frase muito simples de Fernando Pessoa, em que ele escreve algo como “je ne peux pas dormir”, “não consigo dormir”. Perguntam-me muitas vezes se a insónia tem alguma relação com a escrita. Penso que tem uma certa ligação a um certo tipo de escrita, mais poética, mais metafísica, sim. Mas não afeta todos os escritores.
Uma das ideias que se pode retirar da leitura deste livro é que a insónia é uma espécie de experiência totalitária, porque define todos os momentos da vida. Sim, isso é verdade.
Cada pessoa tem uma experiência diferente, mas como definiria o estado de espírito de alguém com insónia? Exaustão, um certo tipo de fadiga, de cansaço, que é muito específico. Falta-nos algo muito profundo, um elemento de vida tão necessário como a água, a comida e o abrigo. É uma tortura. Eu sou basca e, quando Francisco Franco estava no poder, os polícias torturavam os independentistas bascos com falta de sono, era uma espécie de tortura limpa. Como é que eu a descreveria para lá da terrível palavra “tortura”? Não posso, é mesmo isso. No entanto, como também conto no livro, tive a sorte de não ser uma camionista que conduz de manhã ou, como a minha mãe, ser uma professora de crianças pequenas. Porque nesse tipo de trabalho, é preciso ser 100% eficiente logo às oito da manhã. De um modo geral, a minha vida tem sido dividida em duas fases de sono: quatro horas de noite, o que não é suficiente para mim — não faço parte daquelas pessoas sortudas, como Macron ou Obama, que podem dormir apenas quatro ou cinco horas —, e também uma longa sesta de duas horas a dada altura. O meu problema é que nunca sei quando vou apagar, por isso nunca pude — e ainda não posso — ter uma vida social adequada, como almoçar com editores ou jornalistas! Por exemplo, acho que vou voltar a cair depois desta chamada do Zoom, é mais ou menos a minha hora.
observador